Acumulam-se evidências de que a
medicina está prejudicando pessoas saudáveis através da detecção cada vez mais
precoce e da definição cada vez mais ampla de doença.
A tão elogiada capacidade
da medicina de ajudar os doentes está sendo rapidamente desafiada por sua
propensão em prejudicar os saudáveis. Uma literatura científica em expansão
está fomentando a preocupação pública de que muitas pessoas estejam sendo
sobredosadas, sobretratadas e sobrediagnosticadas. Programas de rastreamento
têm detectado casos de câncer em estágio inicial que jamais causariam sintomas
ou morte; tecnologias de diagnóstico sensíveis identificam “anormalidades” tão
minúsculas que continuariam benignas; ampliação das definições de doença
significa que pessoas em riscos ainda muito pequenos recebem rótulos médicos
permanentes e tratamentos vitalícios que não beneficiariam muitas delas.
Com
estimativas de que mais de US$200 bilhões sejam desperdiçados em tratamentos
desnecessários por ano nos Estados Unidos, o ônus cumulativo do
sobrediagnóstico representa uma ameaça significativa à saúde humana. A mudanças
dos critérios diagnósticos de várias condições, está fazendo com que
virtualmente toda a população de idosos seja classificada como portadora de ao
menos uma condição crônica.
Definido estritamente, o sobrediagnóstico ocorre
quando pessoas sem sintomas são diagnosticadas com uma doença que, em última
instância, não faria com que apresentassem sintomas ou morressem precocemente.Definido
mais amplamente, ele se refere a problemas relacionados a excesso de
medicalização e sobretratamento subsequente, perigo do diagnóstico, mudança de
limiares e alarmismo da doença – todos processos que ajudam a reclassificar
pessoas saudáveis com problemas pequenos ou em baixo risco como doentes.
O aspecto negativo do sobrediagnóstico inclui os efeitos negativos da rotulagem
desnecessária, os danos decorrentes de exames e terapias desnecessários e o
custo oportunista de recursos desperdiçados que poderiam ser mais
bem-empregados para tratar ou prevenir doenças reais. O desafio é articular a
natureza e a extensão do problema de maneira mais ampla, identificar padrões ou
motivadores e desenvolver um pacote de respostas que sejam desde clínicas até
culturais.
No nível clínico, um objetivo primordial é discriminar melhor
“anormalidades” benignas daquelas que prosseguirão e causarão danos. Em termos
de orientação e conscientização do público e dos profissionais, são necessárias
informações mais honestas sobre o risco de sobrediagnóstico, particularmente
com relação ao rastreamento. Mais profundamente, as evidências cumulativas de
que estamos prejudicando pessoas saudáveis podem forçar o questionamento de
nossa crença na detecção cada vez mais precoce, uma renovação do processo de
definição de doença e uma mudança fundamental nos incentivos sistêmicos que
levam a excessos perigosos.
No próximo ano, uma conferência
científica internacional chamada Preventing Overdiagnosis terá como objetivo
aprofundar a compreensão e a conscientização do problema e sua prevenção. A
conferência acontecerá em 10-12 de setembro de 2013 nos Estados Unidos,
organizada pelo Dartmouth Institute for Health Policy and Clinical Practice em
parceria com o BMJ, a organização americana líder de consumidores Consumer
Reports e a Bond University. A conferência é oportuna, já que a crescente
preocupação com o sobrediagnóstico está abrindo caminho para uma ação
coordenada. A seção “Less is More” do Archives of Internal Medicine
regularmente questiona a base de evidências; os grupos de política de saúde de
alto nível na Europa estão discutindo maneiras de lidar com o excesso;e a
campanha recentemente lançada Choosing Wisely (Escolhendo com Sabedoria)
adverte sobre a quantidade de exames e tratamentos potencialmente desnecessários
em nove especialidades.
Vários fatores – incluindo a melhor
das intenções – estão motivando o sobrediagnóstico, porém os avanços
tecnológicos são um importante contribuinte.
A literatura sugere várias e
amplas vias relacionadas ao sobrediagnóstico: o sobrediagnóstico detectado no
rastreamento de pessoas sem sintomas; o sobrediagnóstico resultante do uso de
exames cada vez mais sensíveis em pessoas com sintomas; o sobrediagnóstico acidental
(“acidentalomas”) e o sobrediagnóstico resultante de definições excessivamente
ampliadas de doença. Essas diferentes vias não são mutuamente exclusivas, e uma
classificação mais rigorosa das diversas formas de sobrediagnóstico será foco
de discussão na conferência científica de 2013.
Sobrediagnóstico detectado em
rastreamento
Essa via de sobrediagnóstico ocorre
quando um programa de rastreamento detecta doença em uma pessoa sem sintomas,
porém a doença está em um estágio que jamais causaria sintomas ou morte
precoce. Às vezes, isso é chamado de pseudodoença. Ao contrário das noções
populares de que os tipos de câncer são universalmente nocivos e fatais, alguns
podem regredir, deixar de progredir ou progredir tão lentamente que não
causarão danos antes que o indivíduo morra por outras causas.
Conforme
discutiremos a seguir, há fortes evidências de ensaios clínicos randomizados e
outros estudos que comparam populações rastreadas e não rastreadas de que uma
importante proporção dos casos de câncer detectados através de alguns programas
populares de rastreamento podem ser pseudodoenças.
Evidências de estudos de autópsias
sugerem um grande reservatório de doença subclínica na população em geral,
incluindo câncer de próstata, tireoide e mama, cuja maior parte nunca causou
danos.De maneira similar, rastrear o coração de pessoas sem sintomas ou em
baixo risco também pode levar ao sobrediagnóstico de aterosclerose coronária e
a subsequentes intervenções desnecessárias.Nosso entendimento seja da natureza
e da extensão do sobrediagnóstico, seja da quantidade de pseudodoença detectada
pelo rastreamento continua limitado, mas está evoluindo e, como observaram
recentemente Woolfe e Harris no JAMA , “a preocupação com o sobrediagnóstico é
justificada”.
Exames cada vez mais sensíveis
As pessoas que se apresentam aos
médicos com sintomas também podem ser sobrediagnosticadas, já que as mudanças
nas tecnologias ou nos métodos de diagnóstico permitiram a identificação de
formas menos graves de doenças ou distúrbios. Torna-se cada vez mais claro que
uma proporção substancial dessas “anormalidades” iniciais nunca progredirá, o
que levanta questões inusitadas sobre exatamente quando se deve usar os rótulos
diagnósticos e abordagens terapêuticas tradicionalmente empregados contra
formas muito mais graves de doença.
Acidentalomas
Exames de imagens diagnósticas do
abdome, da pelve, do tórax, da cabeça e do pescoço podem revelar “achados
acidentais” em até 40% dos indivíduos que estão sendo examinados por outros
motivos.Alguns deles são tumores, e a maior parte desses “acidentalomas” é
benigna. Um número muito pequeno de pessoas se beneficiaria da detecção precoce
de um tumor maligno acidental, enquanto outras sofreriam de ansiedade e efeitos
adversos de outros exames e tratamentos de uma “anormalidade” que jamais as
teria prejudicado. Como outros pesquisadores têm demonstrado, a rápida ascensão
da incidência de alguns tipos de câncer, comparada a taxas de mortes
relativamente estáveis, é um fenômeno que sugere sobrediagnóstico disseminado,
seja por rastreamento, seja pela detecção de acidentalomas.
Definições excessivamente ampliadas
Outra via para o sobrediagnóstico é
através da ampliação das fronteiras da doença e da redução dos limiares de
tratamento a um ponto em que um rótulo médico e a terapia subsequente podem
causar mais danos do que fazer bem às pessoas. A mudança dos critérios
diagnósticos de várias condições está aumentando o número de pessoas definidas
como doentes, fazendo com que virtualmente toda a população de idosos seja
classificada como portadora de ao menos uma condição crônica. Essa ampliação
aconteceu tanto no caso de condições assintomáticas que representam risco de um
evento adverso, como a osteoporose, em que os tratamentos causam mais danos do
que benefícios àqueles com risco muito baixo de fratura, quanto no caso de
condições comportamentais, como a disfunção sexual feminina, em que
dificuldades comuns foram reclassificadas como disfunções.
As evidencias mais forte do
sobrediagnostico provem dos estudos de câncer de mama detectado no rastreamento.
Essas mudanças nos critérios
diagnósticos são comumente feitas por grupos de profissionais da saúde que
mantêm vínculos financeiros com companhias que se beneficiam diretamente de
qualquer expansão do grupo de pacientes. Conforme as definições ampliam-se e os
limiares caem, as pessoas com riscos menores ou problemas menos graves são
rotuladas, o que significa que os potenciais benefícios do tratamento declinam,
levantando-se a possibilidade de que os danos superem os benefícios. Segundo
Welch e colaboradores estimaram em seu livro Overdiagnosed,3 de 2011, muitas
pessoas diagnosticadas e tratadas por um longo período para concentrações de
colesterol próximas do normal ou osteoporose próxima do normal podem estar
sendo “sobrediagnosticadas”, no sentido de que nunca teriam apresentado os
eventos que seus tratamentos pretendem prevenir.
Uma modalidade relacionada de
sobrediagnóstico ocorre quando as pessoas são diagnosticadas fora dos critérios
já ampliados de diagnóstico, como ocorre quando as normas inapropriadas do
fabricante exageram a incidência de uma anormalidade, quando os métodos de
diagnóstico erroneamente rotulam flutuações randômicas ou normais em biomarcadores
como anormalidades reais ou quando qualificadores importantes são deixados de
fora do processo diagnóstico.
Problemas do sobrediagnóstico
Asma – um estudo canadense
sugere que 30% das pessoas com o diagnóstico podem não sofrer de asma,
enquanto 66% delas podem não precisar de medicação.
Transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade – as definições ampliadas levaram a
preocupações com o sobrediagnóstico; meninos nascidos no final do ano escolar
apresentam uma chance 30% maior de receber o diagnóstico e chance 40% maior
de serem medicados do que aqueles nascidos no começo do ano.
Câncer
de mama –
uma revisão sistemática sugere que até um terço dos casos de câncer
detectados no rastreamento podem ser sobrediagnosticados.
Doença
renal crônica –
a definição controversa classifica uma em cada dez pessoas como portadora da
doença; há preocupações com o sobrediagnóstico de muitos idosos.
Diabete
gestacional –
a definição expandida classifica quase uma em cada cinco gestantes.
Hipertensão
arterial –
uma revisão sistemática sugere a possibilidade de sobrediagnóstico
substancial.
Colesterol
alto – estima-se que até 80% das pessoas com colesterol quase normal tratadas
a vida toda podem ser sobrediagnosticadas.
Câncer
de pulmão – cerca
de 25% ou mais dos casos de câncer de pulmão detectados no rastreamento podem
ser sobrediagnosticados.
Osteoporose – as definições
expandidas podem significar que muitas mulheres de baixo risco sofrem danos.
Câncer
de próstata –
o risco de um câncer detectado pelo PSA ser sobrediagnosticado pode ser
superior a 60%.
Embolia
pulmonar – o
aumento na sensibilidade do diagnóstico leva à detecção de pequenos êmbolos,
porém muitos deles não exigem tratamento com anticoagulante.
Câncer
de tireoide –
grande parte do aumento observado na incidência pode ser devido ao
sobrediagnóstico.
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Exemplos de sobrediagnóstico
As crescentes evidências relativas ao
sobrediagnóstico sugerem que o problema pode existir em extensões variadas e em
diversas condições , incluindo aquelas para as quais o subdiagnóstico pode,
simultaneamente, estar ocorrendo. Para algumas condições, as evidências
continuam provisórias e especulativas; para outras, tornaram-se muito mais
robustas.
Câncer de mama
Certamente, as evidências mais fortes
do sobrediagnóstico provêm de estudos de câncer de mama detectado no
rastreamento, embora as estimativas de sua extensão tenham grande variação. Uma
revisão sistemática de 2007 no Lancet Oncology concluiu que a proporção de
sobrediagnóstico de câncer de mama invasivo entre mulheres na casa dos 50 anos
variava entre 1,7% e 54%. Um estudo australiano estimou que a taxa fosse de
pelo menos 30%,enquanto um estudo norueguês calculou 15-25%. Uma revisão
sistemática de 2009 no BMJ concluiu que até um terço de todos os casos de câncer
detectados no rastreamento podem ser sobrediagnosticados. Entretanto, mesmo com
fortes evidências de estudos de base populacional, atualmente é impossível
discriminar entre os tipos de câncer que causariam dano e aqueles que não
causariam.
Câncer de tireoide
Embora as chances de exames
detectarem uma “anormalidade” na tireoide sejam altas, o risco de algum dia
causar danos é pequeno. A análise da crescente incidência mostra que muitos dos
casos de câncer de tireoide recentemente diagnosticados são as formas menores e
menos agressivas que não exigem tratamento, que por si carreiam o risco de
lesões aos nervos e medicamentos de longo prazo.
Diabete gestacional
Uma revisão de 2010 dos critérios que
definem o diabete gestacional recomendou uma drástica redução do limiar de
diagnóstico, fazendo com que mais do que o dobro das gestantes fossem
classificadas em quase 18%. Os proponentes argumentam que o rastreamento
universal com a nova definição reduzirá os problemas de saúde, incluindo os
bebês “grandes para a idade gestacional”. Os críticos, no entanto, reivindicam
um debate urgente antes que a nova definição expandida seja mais amplamente
adotada, já que receiam que muitas mulheres possam ser sobremedicadas e
sobrediagnosticadas. Além disso, o exame de rastreamento tem reprodutibilidade
ruim para casos moderados, e as evidências de benefícios para gestantes
recentemente diagnosticadas são fracas e os benefícios, na melhor das
hipóteses, são modestos.
Doença renal crônica
Mais de 10% dos adultos nos Estados
Unidos são classificados como portadores de alguma forma de doença renal
crônica. Uma definição de trabalho lançada como parte de novas diretrizes
clínicas afirma que uma taxa de filtração glomerular estimada (eGFR) inferior a
60 ml/min/1,73 m2 e inalterada por três meses ou mais é considerada anormal,
uma decisão que, segundo os críticos, automaticamente cria o potencial de
sobrediagnóstico, particularmente entre os idosos.
Uma crença intuitiva na detecção
precoce, alimentada pela profunda sé na tecnologia médica está no cerce do
problema do sobrediagnóstico.
De acordo com Winearls e Glassock, o novo sistema de classificação é “como uma pesca de arrastão” e “captura muito mais inocentes do que deveria”. Os autores estimam que até um terço das pessoas com mais de 65 anos atendem aos novos critérios e, entre essas pessoas, menos de uma em 1.000 desenvolverá doença renal terminal a cada ano. Também apontam para problemas importantes quanto à confiabilidade e à consistência do exame de eGFR, expressando preocupações de que muitos idosos estejam sendo rotulados com base em uma única medida laboratorial potencialmente imprecisa. Em outra ocasião, argumentaram que “a maioria daqueles considerados portadores de doença renal crônica não apresenta doença renal identificável” e destacaram tentativas de algumas organizações de se distanciar da nova e controversa definição, de aumentar o limiar para diagnóstico e de reduzir drasticamente a prevalência.Respondendo às críticas, os proponentes defenderam a nova definição como sendo “clara, simples e útil”.
Asma
Embora a asma possa ser grave, porém
subdiagnosticada e subtratada, alguns estudos sugerem que também pode haver
sobrediagnóstico substancial. Um grande estudo em 2008 concluiu que quase 30%
das pessoas diagnosticadas como portadoras de asma não sofriam da condição, e
quase 66% delas não precisavam de medicamentos ou cuidados para a asma durante
seis meses de seguimento.
Os autores concluíram: “Uma proporção substancial de
pessoas (...) pode ser sobrediagnosticada com asma e receber medicamentos
desnecessários”. No mesmo ano, um estudo holandês concluiu que, de 1.100
pacientes que utilizavam corticosteroides inalados, 30% poderiam estar usando
os medicamentos sem qualquer indicação clara.
Embolia pulmonar
Os médicos pensam na embolia pulmonar
como um diagnóstico que “não pode passar despercebido”, pois a falha em
detectá-lo tem consequências catastróficas. Historicamente, tal condição era
diagnosticada apenas quando o bloqueio era grande o suficiente para causar
infarto de parte do pulmão ou instabilidade hemodinâmica. Nesses pacientes, o
tratamento com um anticoagulante ou agente trombolítico era considerado
obrigatório. Hoje, porém, a angiotomografia pulmonar (angio-TC) é capaz de
detectar coágulos menores, e há incerteza quanto à necessidade de sempre
tratar.
Analisando tendências antes e depois da introdução da angiotomografia
pulmonar, Weiner e colaboradores sugeriram que a quase duplicação da incidência
“reflete uma epidemia de exames diagnósticos que criou o sobrediagnóstico”, com
grande parte do aumento composto de casos “clinicamente sem importância”, que
“não teriam sido fatais mesmo que não diagnosticados e não tratados”. Um estudo
observacional está investigando a segurança de não tratar pessoas com êmbolos
muito pequenos.
Motivadores do sobrediagnóstico
•
Mudanças tecnológicas que detectam “anormalidades” cada vez menores.
•
Interesses comerciais e profissionais velados.
•
Grupos com conflitos de interesse que produzem definições expandidas de
doenças e redigem diretrizes.
•
Incentivos legais que punem o subdiagnóstico, mas não o
sobrediagnóstico.
•
Incentivos do sistema de saúde que favorecem mais exames e tratamentos.
•
Crenças culturais de que mais é melhor; fé na detecção precoce não modificada
pelos seus riscos.
|
Transtorno de déficit de
atenção e hiperatividade
Muito tem sido escrito sobre a
expansão das definições diagnósticas na doença mental e sobre as preocupações
com os perigos do sobretratamento. O debate foi intensificado com sugestões de
que os processos atuais para definição de doença possam estar contribuindo para
o sobrediagnóstico disseminado de condições como os transtornos bipolar,
autista e de déficit de atenção e hiperatividade. Um foco de preocupação é o
possível sobrediagnóstico de crianças, o qual não têm influência na adequação
de um rótulo que pode mudar suas vidas permanentemente. Isso é particularmente
saliente com o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade.
Um estudo
recente de quase um milhão de crianças canadenses concluiu que meninos nascidos
em dezembro (tipicamente os mais jovens do ano) apresentavam uma chance 30%
maior de receber o diagnóstico e uma chance 40% maior de receber medicamentos
do que aqueles nascidos em janeiro. Os autores concluíram que seus achados
“levantam preocupações sobre os potenciais danos do sobrediagnóstico e da
sobreprescrição”.
Motivadores do sobrediagnóstico
As forças que motivam o
sobrediagnóstico estão profundamente incorporadas na cultura da medicina e da
sociedade mais ampla, destacando os desafios enfrentados por qualquer tentativa
de combatê-las. Um grande motivador é a própria mudança tecnológica. Black
descreveu, em 1998, que a capacidade de detectar anormalidades menores
axiomaticamente tende a aumentar a prevalência de qualquer doença. Por sua vez,
isso leva à supervalorização dos benefícios das terapias, pois formas mais
leves de doença são tratadas e as melhorias na saúde são erroneamente
atribuídas ao sucesso do tratamento, criando um circuito de “falso feedback”
que alimenta um “ciclo de aumento dos exames e tratamentos que pode, por fim,
causar mais danos do que benefícios”.
As indústrias que se beneficiam dos
mercados expandidos de exames e tratamentos têm ampla influência na profissão
médica e na sociedade em geral, seja através de laços financeiros com grupos
profissionais e de pacientes, seja através do financiamento de propaganda
direta ao consumidor, fundações de pesquisa, campanhas para conscientização de
doenças e orientação médica.
Ainda mais importante, os membros dos grupos que
redigem as definições de doenças ou os limiares para tratamento costumam manter
laços financeiros com companhias que só têm a ganhar com a expansão dos
mercados. De maneira similar, os profissionais da saúde e suas associações
podem ter interesse na maximização do grupo de pacientes em sua especialidade; assim,
os autoencaminhamentos por médicos a tecnologias diagnósticas ou terapêuticas
nas quais tenham interesse comercial também podem motivar diagnósticos
desnecessários.
Evitar ações judiciais e a psicologia
do arrependimento são outros motivadores óbvios, uma vez que os profissionais
podem ser punidos por não perceber os sinais iniciais de doenças, mas
geralmente não enfrentam sanções pelo sobrediagnóstico. Medidas de qualidade
focadas em fazer mais também podem estimular o sobrediagnóstico a fim de atingir
metas para incentivos financeiros.
Uma crença intuitiva na detecção
precoce, alimentada pela profunda fé na tecnologia médica, certamente está no
cerne do problema do sobrediagnóstico. Cada vez mais consideramos o fato de
simplesmente estar “em risco” de doença futura como tendo a doença em si.
Começando com o tratamento da hipertensão arterial no meio do século 20 proporções
crescentes da população saudável têm sido medicalizadas e medicadas para um
número também crescente de condições assintomáticas, com base apenas em seu
risco estimado de eventos futuros.
Embora a abordagem tenha reduzido o
sofrimento e prolongado a vida de muitos indivíduos, para aqueles
sobrediagnosticados ela desnecessariamente transformou a experiência de vida em
uma confusa teia de condições crônicas. A norma cultural de que “mais é melhor”
é confirmada por evidências recentes sugestivas de que a satisfação do paciente
flui do maior acesso a exames e tratamentos, embora um maior volume de cuidado
possa estar associado a mais danos.
O que podemos fazer?
Com base no conhecimento e na
atividade existentes, a conferência de 2013 oferecerá um fórum para mais
aprendizado, aumento da conscientização e desenvolvimento de maneiras para
prevenir o problema do sobrediagnóstico (www.preventingoverdiagnosis.net). As pesquisas
relativas a tal questão são agora reconhecidas como parte do futuro
direcionamento científico do setor de prevenção de câncer do Instituto Nacional
do Câncer nos Estados Unidos.
A conferência de 2013 espera dar aos
pesquisadores que trabalham nessa área a chance de compartilhar e debater
métodos, bem como avançar em suas agendas de pesquisas. Com respeito à
orientação, o desenvolvimento de uma variedade de currículos e pacotes de
informações ajudará a aumentar a conscientização quanto aos riscos do
sobrediagnóstico, particularmente associados ao rastreamento.
Em associação com o BMJ, está sendo
planejada uma série de artigos sobre o potencial de sobrediagnóstico em
condições específicas. E, no nível da prática clínica, novos protocolos estão
sendo desenvolvidos para que se tenha mais cautela no tratamento de
acidentalomas. Além disso, há solicitações para que consideremos aumentar os
limiares que definem o “anormal” – por exemplo, no rastreamento do câncer de
mama – e avaliemos os métodos de observação de alterações em algumas patologias
suspeitas com o tempo, em vez de intervirmos imediatamente. Conforme
mencionamos, estudos em estágio inicial acerca de como não diagnosticar ou
interromper a prescrição com segurança estão começando a surgir.
Em nível de políticas, a reforma do
processo de definição de doença é exigida com urgência, com um modelo
originário dos National Institutes of Health, nos Estados Unidos, em que as
pessoas com conflitos de interesse financeiros ou de reputação são
desqualificadas da participação em grupos. A avaliação isenta das evidências
pode resultar no estreitamento das definições de doença, como tem sido
observado com as recentes tentativas de propostas para aumentar limiares para
hipertensão arterial, o que poderia causar a “desmedicalização” de até 100
milhões de pessoas. Os processos para definição de doença também se
beneficiarão da tentativa de sintetizar as evidências da medicina clínica com a
literatura sobre as mais amplas determinantes ambientais e sociais da saúde.
Outras reformas políticas deverão revisar a permanência de alguns rótulos
diagnósticos, abordar pedidos de maior independência no desenho e na condução
de estudos científicos e ajustar os incentivos estruturais e legais que motivam
o sobrediagnóstico.
A preocupação com o sobrediagnóstico não pode impedir que muitas pessoas recebam cuidados de saúde bastante necessários. Ao contrário, os recursos desperdiçados com o cuidado desnecessário serão mais bem-aplicados tratando-se e prevenindo-se doenças reais. O desafio é decidir qual é qual, além de produzir e disseminar evidências que nos ajudem a tomar decisões mais informadas sobre quando um diagnóstico pode fazer mais bem do que mal.
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